"O Nascimento de Vênus" de Sandro Botticelli (±1480)
Este artigo critica a mistura de teorias e práticas terapêuticas, inclusive as psicanalíticas, que são muito distintas em sua fundamentação e acabam por prestar um desserviço quando estudadas e praticadas conjuntamente. O ponto de partida dessa crítica é um movimento de “retorno a Lacan”, na contramão do confuso estabelecimento do freudolacanismo (mistura das teorias de Freud com as de Lacan) já estabelecido na psicanálise brasileira. Pautado, justamente, nas formulações de Lacan, este artigo pretende destacar a necessidade de cautela para os novos terapeutas que, sedentos por especializações diversas para suprir as “demandas de mercado”, se aventuram de maneira superficial por diversas abordagens, incorrendo em equívocos teóricos e clínicos.
Se a pluralidade de abordagens terapêuticas fosse a solução para os impasses da clínica, então bastaria que os terapeutas colecionassem certificações como quem coleciona figurinhas. De início, a promessa parece até tentadora: um pouco de Freud para os traumas, um toque de Jung para os sonhos, uma pitada de Rogers para o acolhimento, um grama de TCC para as crenças disfuncionais e, quem sabe, um caldo de Lacan para os enigmas do desejo. Tudo misturado e bem servido em uma "salada mista". Mas, como toda receita mal planejada, o resultado costuma ser indigesto.
A confiança na prática eclética parte da premissa de que a diversidade é sempre um bem em si mesma. O problema é que a combinação de elementos teóricos e técnicos não se dá como em um bufê livre. Ao contrário, cada abordagem tem um rigor interno, um modo de operar e uma lógica própria. Atravessar esses sistemas de forma superficial equivale a acreditar que um vinho pode ser melhorado misturando-o à Coca-Cola. E no fim, o que fica não é uma experiência enriquecida, mas sim um pastiche teórico, onde se perde a inteligibilidade daquilo que se propôs estudar e praticar.
Entre os recém-formados em psicologia e psicanálise, há uma tendência irresistível: a da especialização pluralista. Quanto mais cursos, formações e abordagens puderem ser colocadas no currículo, melhor. Afinal, ser "eclético" parece sinônimo de competência. Mas será mesmo? O que acontece quando um profissional se propõe a misturar abordagens, técnicas e epistemologias que partem de fundamentos teóricos incompatíveis entre si? O resultado, quase sempre, é um caldo confuso, onde o essencial se dilui em superficialidades.
Tomemos a metáfora da salada mista. A ideia de que misturar diferentes ingredientes pode enriquecer o prato faz sentido na culinária, mas será que se aplica à clínica? Se cada abordagem parte de pressupostos distintos sobre o sujeito, o sintoma e a cura, como é possível transitar entre elas sem cair em contradições?
A psicanálise, por exemplo, opera com uma lógica que não se alinha às abordagens cognitivistas ou comportamentais, que buscam eliminar sintomas sem necessariamente escutar o que eles têm a dizer. Misturar tais perspectivas resulta não em um saber ampliado, mas em um sincretismo empobrecido.
Dentro dessa lógica, surge o chamado "freudolacanismo", um esforço de conciliar Freud e Lacan sem levar em conta as rupturas fundamentais entre ambos. Não se trata de negar a continuidade do pensamento psicanalítico, mas de reconhecer que Lacan, ao reler Freud, propôs uma abordagem que reformula conceitos cruciais, como a estrutura do inconsciente, a função do Nome-do-Pai e a própria direção da cura. A tentativa de unir os dois sem considerar essas diferenças resulta, muitas vezes, numa caricatura que faz concessões a um modelo de clínica domesticado, mais palatável ao gosto do grande público.
Além disso, essa postura tem consequências diretas tanto na formação dos terapeutas quanto na experiência dos pacientes. Para o terapeuta, a falsa segurança de "ter um pouco de tudo" esconde a falta de fundamentação sólida em qualquer coisa. Como aprofundar-se em conceitos que, para fazer sentido, exigem uma estrutura interna de pensamento que não se sustenta quando diluída em um ecletismo ingênuo? Para os pacientes, a experiência se torna errática, pois a cada sessão o terapeuta pode estar operando com uma lógica diferente, sem que ele mesmo perceba as contradições que está produzindo.
Esse fenômeno não se restringe à psicanálise. No campo da psicologia clínica, observa-se a busca pelo chamado "padrão ouro", que procura definir quais abordagens são mais eficazes para cada transtorno ou diagnóstico. Nesse modelo, o profissional é incentivado a se formar como um especialista em diversas terapias consideradas cientificamente validadas, tornando-se um aplicador técnico de protocolos predefinidos. O problema desse modelo é que ele parte de uma concepção mecanicista da mente, onde o sofrimento psíquico pode ser tratado como um conjunto de disfunções a serem corrigidas, ignorando a singularidade de cada sujeito.
Além disso, há um esforço crescente para transformar a psicologia em uma espécie de "medicina da mente", onde o psicólogo assume o papel de um clínico geral dos transtornos psíquicos. O percurso profissional se estrutura para que, após uma formação generalista, o psicólogo vá se especializando em diagnósticos e categorias específicas, aproximando-se cada vez mais do modelo biomédico. Esse movimento, longe de enriquecer o campo, empobrece-o, pois desloca a atenção do sofrimento subjetivo para uma catalogação de sintomas, promovendo uma padronização do cuidado que ignora a complexidade do humano.
Se há algo que a prática clínica exige, é coerência e rigor. Isso não significa dogmatismo ou recusa ao diálogo, mas sim o compromisso de se sustentar em uma estrutura sólida de pensamento, em vez de se perder na ilusão de que um apanhado de técnicas pode suprir a falta de uma orientação teórica consistente. Afinal, quando se trata de prática clínica, não basta que a salada seja mista. Ela precisa fazer sentido.
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Jiquiriçá-BA, 2025.