"O Nascimento de Vênus" de Sandro Botticelli (±1480)
Este artigo critica a imposição de normas moralistas e conservadoras no campo psicanalítico, que limitam a subjetividade e a expressão dos analistas tanto dentro quanto fora do setting clínico. Inspirado em um caso real, onde um psicanalista foi censurado por compartilhar uma foto pessoal nas redes sociais, o texto explora como essa censura reflete um discurso conservador que contradiz a ética do desejo proposta por Lacan. A partir das formulações de Lacan, o artigo examina a tensão entre o discurso do mestre e o discurso do analista, propondo uma reflexão sobre a liberdade e o papel subversivo do analista na sociedade contemporânea.
O título pode parecer, à primeira vista, uma brincadeira irônica com o estereótipo da mulher "recatada e do lar", uma expressão amplamente usada para descrever o comportamento feminino idealizado. Aqui, serve como provocação sobre o papel do psicanalista hoje. O que se espera de um psicanalista? Ele deve se manter "recatado", limitado por um ideal conservador, mesmo fora do setting clínico?
Recentemente, um jovem psicanalista compartilhou nas redes sociais uma foto de um ensaio sensual, celebrando sua relação com o próprio corpo. A publicação gerou reações negativas dentro do campo psicanalítico, com colegas acusando-o de comprometer a imagem do "psicanalista sério", o que levou ao seu afastamento de eventos profissionais, perdas de pacientes e alunos. Isso expõe uma profunda contradição: como pode um campo que lida diretamente com a subversão do desejo reforçar normas moralistas tão rígidas?
A imposição de uma “etiqueta” ao analista, visto como guardião de um comportamento sóbrio e reservado, não é nova. Entretanto, em uma época de redes sociais que amplificam a visibilidade pessoal, essas normas conservadoras se tornam ainda mais visíveis. Muitos psicanalistas parecem esquecer que a psicanálise, desde Freud, sempre operou no campo da subversão.
Freud, ao enfrentar as restrições morais de sua época, revelou o desejo inconsciente como uma força que não se submete às convenções sociais. Como ele diz em suas “Conferências Introdutórias”: “o [Eu] ele não é nem mesmo senhor de sua própria casa”. Aqui, Freud nos lembra que o inconsciente, que governa grande parte de nossas ações, escapa ao controle racional, desafiando as normas que historicamente governaram a mente humana, desde Platão a Descartes, passando por Santo Agostinho.
Ainda nas “Conferências Introdutórias”, Freud explora como a repressão dos impulsos inconscientes gera comportamentos moralistas rígidos, em que aqueles que reprimem seus próprios desejos frequentemente tentam controlar os desejos alheios.
Lacan aborda diretamente o moralismo em sua formulação da ética do desejo, especialmente no Seminário 7: A Ética da Psicanálise, onde afirma que a única falha ética é "ceder de seu desejo". Isso nos leva a questionar: a censura ao psicanalista que celebra seu corpo nas redes sociais não seria uma tentativa de obrigá-lo a ceder ao desejo do Outro, conformando-se a um ideal de psicanalista que, ironicamente, contradiz a ética psicanalítica?
O que está em jogo aqui é como o psicanalista lida com o desejo — o próprio e o de seus pacientes. Lacan ensina que o analista deve "não ceder ao desejo do Outro", ou seja, não se submeter a normas sociais ou morais que desvirtuem sua função analítica. Nesse sentido, o psicanalista é, por natureza, subversivo.
O "analista recatado e do lar" abdica dessa subversão em nome da conformidade. Lacan radicalizou a ideia de que o desejo nos constitui, e o analista, longe de ser uma figura moralmente "correta", deve ser aquele que sustenta o desejo, sem ceder ao ideal normativo do Outro.
No Seminário 17: O Avesso da Psicanálise, Lacan descreve o discurso do mestre como uma estrutura de poder que sustenta as normas sociais e reprime o desejo. O mestre usa o saber para manter a ordem e controlar o que é aceitável ou inaceitável. Esse discurso se reflete na censura ao analista por expressar seu desejo de forma subversiva, como em uma rede social.
Quando colegas psicanalistas reagem com censura, ocupam a posição de "mestres", tentando impor conformidade a um ideal de comportamento "recatado". O analista, ao se expor de maneira diferente, quebra a ilusão de que deve ser uma figura neutra e sem desejo. Contudo, Lacan nos mostra que o discurso do analista subverte o poder do mestre, permitindo ao sujeito enfrentar suas contradições e desejos.
Se dentro do consultório o analista deve se afastar das respostas fáceis e da posição de mestre, fora dele é igualmente importante que não se submeta ao moralismo que tenta reduzir sua subjetividade a um estereótipo conservador. A psicanálise deveria questionar, não reforçar, esses valores conservadores. O analista não é alguém que se enquadra em normas pré-estabelecidas; ele desestabiliza essas normas, tanto no campo clínico quanto no social.
É importante lembrar que o psicanalista é uma função e não uma identidade essencial. Lacan nos ensina que o analista só existe no setting analítico, onde ele ocupa o lugar de conduzir o discurso do analisante em direção ao seu desejo. Fora do setting, o psicanalista retorna ao lugar de sujeito de desejo, como qualquer outro indivíduo ou cidadão, sem uma distinção especial perante a sociedade. Assim, fora da clínica, ele não é investido do mesmo papel simbólico que ocupa na análise. Isso reforça a ideia de que o analista, como sujeito de desejo, também pode — e deve — ocupar seu lugar no campo social, sem se submeter às exigências morais de um ideal analítico rígido, que muitas vezes não respeita a complexidade do desejo humano.
A relação entre corpo e psicanálise é sempre delicada. O analista deve ocupar um lugar de neutralidade na escuta, mas isso não significa apagar sua subjetividade ou seu corpo. Lacan ensina que o desejo sempre subverte o simbólico, e o corpo do analista é parte dessa dinâmica.
A censura ao jovem analista que expressou sua relação com o corpo nas redes sociais revela uma dificuldade do campo em lidar com o desejo. O moralismo que impera tenta reduzir o analista a uma figura sem desejo, sem corpo. Isso trai a ética psicanalítica, que nos ensina a respeitar o desejo e a não ceder às imposições do Outro.
E o "lar"? Se, para muitos, o lar é o espaço da previsibilidade e do conforto, na clínica psicanalítica, ele assume outra função. Para o sujeito que fala, o espaço da clínica pode ser um lugar de acolhimento, sim, mas um acolhimento que provoca, desestabiliza e, de certa forma, subverte as certezas. O analista não mantém as ilusões do paciente, mas permite que ele confronte seus impasses.
Para finalizar a reflexão crítica deste artigo, podemos relacionar a imposição de valores morais conservadores ao psicanalista com a tela "O Nascimento de Vênus" de Sandro Botticelli. A obra retrata o surgimento da deusa do amor e da beleza, Vênus, emergindo nua das águas, uma imagem de pura liberdade e expressão do desejo. A beleza de Vênus não está sujeita a normas ou repressões; ela representa o nascimento do desejo em sua forma mais autêntica. Da mesma maneira, o psicanalista, assim como Vênus, deveria estar livre das imposições conservadoras que tentam regular e restringir o desejo — seja o próprio ou o do outro. Assim como a imagem de Vênus, que rompe com as convenções da época ao representar a nudez em sua forma sublime, o psicanalista deve subverter as normativas morais que o tentam enquadrar em estereótipos, tanto dentro quanto fora do setting clínico.
A censura ao desejo e à expressão do corpo que ainda existe no campo psicanalítico, e que é ilustrada no exemplo do psicanalista censurado por sua exposição pessoal, pode ser vista como uma tentativa de esconder o desejo, exatamente como o discurso do mestre descrito por Lacan. A tela de Botticelli serve como uma metáfora para a necessidade de o psicanalista emergir dessas águas moralistas, rompendo com as imposições sociais conservadoras, tal como Vênus surge livre e incondicional. A psicanálise, enquanto campo que lida com a subversão, não pode se submeter a valores que tentam silenciar o desejo, mas deve, como Vênus, ser símbolo de liberdade, tanto no setting clínico quanto fora dele. Assim, a crítica aqui se volta à tentativa de manter o analista dentro de limites que vão contra a própria natureza da psicanálise: uma prática que não cede ao ideal do Outro, mas sustenta o desejo como força ética fundamental.
FREUD, Sigmund. "Uma dificuldade no caminho da psicanálise". In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 141-158.
FREUD, Sigmund. "Conferências introdutórias sobre psicanálise". In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XV. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p. 9-480.
LACAN, Jacques. "O seminário, livro 7: A ética da psicanálise". Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
LACAN, Jacques. "O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise". Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
BOTTICELLI, Sandro. "O nascimento de Vênus". Cerca de 1480. Galeria Uffizi, Florença. Disponível em: [https://www.uffizi.it/en/artworks/the-birth-of-venus] (https://www.uffizi.it/en/artworks/the-birth-of-venus). Acesso em: 11 out. 2024.
Jiquiriçá-BA, 2024.